Enquanto eu olhava enternecido para a garotinha, o jovem pai estava se impacientando com o chorinho dengoso, e perdeu a têmpera:
- Faz ela parar com esse barulho! Tamos no ônibus!
- Como? Já tentei de tudo, me dá suas chaves para "distrair ela". – retrucou a mãe aflita, já pegando o molho de chaves e sacudindo inutilmente na frente da bochechudinha chorosa. O pai se contorcia na cadeira azul desconfortável do "busunga", e pegou no bracinho da manhosinha, dando-lhe um leve, porém firme, tranco.
- Quieta, menina. Cala essa boca!
Apesar da leveza tentada do seu toque, foi um movimento ríspido, bruto mesmo, e eu me incomodei. Acho que se eu tivesse algumas gramas a mais de bom senso, tinha ficado quieto, mas não consegui me segurar. Olhei ostensivamente para a família, de forma acintosa quase. Estávamos em aproximadamente quinze pessoas nos fundos do ônibus, uma coleção de gente adormecida e cansada, alguns perfumados indo atrasados para a escola, outros mal-cheirosos (como eu) voltando para casa, e ninguém mais parecia querer participar daquela cena familiar. Eu olhava de forma agressiva e insistente, ainda que com ternura nos olhos. Apenas a insistência agrediria alguém, e agrediu. O pai se virou para mim e de forma ameaçadora perguntou:
- Tá olhando o quê?
- Sua filhinha é muito linda.
- O quê???
- Sua filhinha é muito linda.
- E o que você tem com isso – ele me disse de forma nada amistosa, agarrado no bracinho gordinho da bonitinha. Nessa hora algumas cabeças curiosas acompanhavam esse nosso diálogo, interessados em alguma possível pancadaria. Muitos poderiam pensar que a gravata que eu usava me dava algum ar de arrogância, de "não pertencer àquele lugar", e queriam me ver surrado.
- Tenho nada não, senhor. Mas é que eu perdi minha filha agora em janeiro, e vendo a sua tão bonitinha, me lembrei dela.
Tá certo, eu menti. Nunca tive filhos, nem filhas, e usei dessa artimanha torpe que é a mentira, mas visava um bem maior. Talvez eu tenha perdão, sei que nessa hora o cara assustou, a mãe que estava de cabeça baixa desde o primeiro arranque que o pai havia dado no braço da filha, levantou timidamente o olhar. Continuei.
- Minha filhinha tinha um ano e meio e morreu agora em janeiro. Sempre foi doentinha, desde que nasceu, tinha um problema de válvulas no coração, então nós sempre soubemos que ela ia morrer. Mas a gente nunca está preparado de verdade, não é mesmo?
Ele não me respondia, os olhos fixos.
- E aí todo dia quando ela chorava, para nós era uma alegria danada, sabe? Sinal que ela ainda estava viva com a gente. Cada sorrisinho dela era uma música, e a mãe adorava vestir ela com vestidinhos assim parecidos com esse, de babados, de laços, ela ficava parecendo um docinho de caju. Desses de festa, sabe?
Ele esboçou um concordar com a cabeça, a mãe tentou timidamente puxar a menina para o colo, mas ele firmou o aperto, transformando-o agora em um abraço, firme, mas carinhoso, protetor.
- Ela engatinhava pela casa, fraquinha, sempre foi muito fraquinha, mas engatinhava e meu maior prazer era andar de gatão atrás dela, fazendo caretas e brincando com ela. Agora esse horário, eu ia chegar em casa e pegar ela bem devagarinho no colo, para ela rir ao me ver. Hoje ela não está mais me esperando lá. Dá uma saudade, sabe? Chegar em casa e não ir correndo ver ela no bercinho. Até mesmo levar ela no hospital, para fazer exame, até disso eu sinto falta. Ela dentro do carrinho, toda enfeitadinha e olhando tudo com os olhinhos espertos, eu tenho certeza que ela ia ser muito estudiosa quando crescesse. Se crescesse.
A mãe já começava a lacrimejar (como eu agora), e muitas cabeças acompanhavam minha história, que eu contava com volume cada vez mais indiscreto. O fundo do ônibus transformado em divã de um falso pai sofrido.
- E eu vendo o senhor com sua filhinha, me desculpe, eu sei que fui sem educação, mas é que não pude deixar de lembrar da minha pequenininha que já foi embora. Até mesmo esse chorinho enjoadinho e manhoso eu sinto falta, de balançar ela no colo para ver se acalmava. E até mesmo essa de balançar as chaves para distrair, até isso a gente fazia com ela. E quando vi sua menininha choramingando assim, senti uma saudade tão grande da minha baixinha. Foi só isso, o senhor me perdoe.
O pai estava visivelmente embaraçado, finalmente falou:
- Me desculpe o senhor, eu que fui "senducação". Triste sua história, moço, dá pena na gente.
- Pois é.
Ele então me surpreendeu:
- O senhor quer segurar a Carolina?
Confesso que eu sou muito sem jeito com crianças pequenas, molinhas, e fiquei com medo de pegar a Carolina (que nomezinho mais fofo, não é?) e fazer alguma besteira. Não aceitei, até porque poderia me emocionar mais ainda, e aí eu ia perder o controle e chorar muito, por coisas outras, mas ia chorar muito.
- Não, obrigado. Se eu segurar sua filhinha fica pior, dói mais. Eu até tenho que descer no próximo ponto, mas obrigado, eu já "tô" melhor.
- Moço, o senhor vai com Deus. Ele vai acalmar o senhor e sua mulher. – me disse a mãe da Carolina, e aí eu não agüentei e chorei. Segurei firme para não me acabar no choro, mas chorei um pouco, aquela generosidade me quebrou.
O pai segurava Carolina (que por incrível que pareça, agora não chorava mais, olhando para fora da janela e dando tapas na vidraça) e dava pequenos pulinhos com ela em seu colo, me olhando com os olhos fundos, compridos. A mãe enxugava o rosto, e o povo em volta me olhava espantado. Desci do ônibus dois pontos antes do meu, porque tinha que sair dali ou senão eu perdia o controle do que tinha começado. Eu já estava muito emocionado, e começava a me sentir culpado pela mentira apresentada. Desci e fui andando até meu prédio.
Confesso que fiquei me perguntando por alguns instantes porque tinha feito aquilo, mas depois me lembrei de Hakim Bey, e me toquei que por alguns instantes eu tinha feito alguma diferença na vida daquela família tão bonita. O abraço carinhoso que ele dava na Carolina quando eu desci do ônibus, me mostrou que eu tinha interferido na vida deles de forma artística... e criminosa. A ARTE COMO CRIME, O CRIME COMO ARTE!! Foi puro Terrorismo Poético, ninguém percebeu que era teatro, ninguém sentiu o cheiro da interpretação, viram verdade, emoção e dor, e não foi mérito de interpretação nenhuma, foi a força do momento.
Carolina ainda vai me agradecer por isso, tenho certeza. Posso estar sendo arrogante, mas tenho certeza que Carolina foi a que mais lucrou com essa interferência.
Cheguei em casa e tomei um banho bem demorado. Pensando na filha que quero ter, que já conheci sonhando e que já conversei, sei como é e do que gosta. Minha pequena Clarice que ainda vai nascer. Linda, brilhante, meiga e atentada, e tomara que eu nunca perca o rumo e balance Clarice da forma bruta que Carolina foi sacudida. Tomara que eu sempre me lembre de um cara de gravata amarela que chorou porque lembrou dentro do ônibus da filha falecida. Um cara que eu não conheço bem, mas já respeito...